- Quanto que é essa caminhada aí, doutor? Na medida da nossa palavra e do nosso alcance.
- Vamos conversar pessoalmente isso aí, cara.
- Você acha melhor?
- É, melhor. Fica tranquilão.
Essa conversa é o início de uma negociação com policiais civis de São Paulo para não prender um criminoso. O Fantástico teve acesso a várias gravações como estas, que mostram, em detalhes, como funciona esse submundo da corrupção, que inclui até sequestros praticados por policiais:
- Quer ficar à vontade? Tem que chegar naquilo que foi combinado.
- Pelo amor de Deus, como é que eu vou arrumar esse dinheiro?
- Aí, você dá os seus corres.
Jóias roubadas chegaram a ser derretidas e viraram dinheiro para comprar a liberdade de um criminoso:
- Tô precisando é de dinheiro. Tem como queimar isso aí?
- O ouro?
- É. Vender isso pra mim?
- Tem.
Qual a punição para policiais que cometem crimes graves como esses? O que aconteceu, por exemplo, com os suspeitos de extorquir dinheiro do traficante Juan Carlos Ramirez Abadia, preso em 2007?
Bandidos que pagaram propina a policiais para não ser presos voltaram a roubar, vender drogas e praticar atentados. O Ministério Público e a corregedoria da Polícia Civil consideram as imagens obtidas com exclusividade pelo Fantástico provas de um crime. Em uma ação, policiais são acusados de sequestrar uma mulher e só libertá-la mediante pagamento de resgate.
As gravações, registradas por 19 câmeras, são da Delegacia de Investigações Gerais (DIG), uma das principais de Campinas, no interior de São Paulo. Esse caso terminou com uma tentativa de assassinato.
O carcereiro Fábio Campos, o investigador Hélio Pavan Filho e o agente policial Sérgio Carrara vão até uma casa, em Campinas. É terça-feira, 9 de agosto de 2011. Segundo as investigações, eles procuram José Agripino, que, de acordo com o Ministério Público, usava o imóvel como laboratório de refino e preparação das drogas que eram vendidas.
Sem ordem judicial, os policiais vasculham a casa e encontram maconha. O traficante José Agripino não está no local. Os policiais levam para a delegacia o dono da casa, o advogado Samoel Alves Da Silva, e uma mulher que mora com ele. Ela não pode ser identificada porque, hoje, é uma testemunha protegida. Em depoimento, ela contou que os policiais queriam R$ 100 mil de propina para "resolver aquela situação", para não prender ninguém; e que foi obrigada por eles a ligar de telefones públicos para José Agripino. Em uma dessas tentativas, ela estava acompanhada pelo policial Sérgio Carrara.
A mulher disse ao Ministério Público que ela e o policial Sérgio foram até uma telefone para, de novo, tentar falar com o traficante. Dessa vez, ele atendeu. Segundo a mulher, o policial pegou o telefone da mão dela e mandou o traficante passar na delegacia, mas sem advogado.
A mulher volta para a delegacia e, uma hora depois, José Agripino chega de carro. O homem apontado pelo Ministério Público e pela corregedoria da Polícia Civil como traficante de drogas é recebido pelo carcereiro Fábio Campos e pelo agente policial Sérgio Carrara. Os três demonstram intimidade, se cumprimentam e entram na DIG.
“De acordo com o que foi apurado durante as investigações, o objetivo era a prática de uma extorsão”, explica o promotor de Justiça Amauri Silveira Filho.
A mulher diz ter presenciado a negociação da propina. Segundo ela, José Agripino não concordou em dar R$ 100 mil e os policiais pressionaram. Falaram que a maior parte era do doutor e que iria sobrar pouco dinheiro para eles. Para o Ministério Público, o doutor é um homem de gravata, o delegado da DIG Paulo Henrique Correia Alves, chefe da equipe e que aparece em uma imagem depois de uma conversa com os policiais. A mulher contou que chegou-se a um acordo e o pagamento seria feito em duas prestações: R$ 60 mil ainda naquele dia e mais R$ 20 mil no mês seguinte.
José Agripino sai da delegacia com o advogado Samoel Alves da Silva, o dono da casa onde, segundo os policiais, funcionaria um laboratório de refino de cocaína. Segundo o Ministério Público, a mulher foi mantida refém dentro da delegacia como garantia de que o pagamento seria feito.
“Nos autos, em nenhum momento foi apresentado nenhum mandado judicial, nenhuma ordem de serviço, nenhum relatório de investigação.”, aponta o promotor.
A mulher diz que só foi libertada depois de sete horas de sequestro. Contou ainda que, depois, viu quando os policiais Fábio Campos, Hélio Pavan Filho e Sérgio Carrara receberam dinheiro da extorsão das mãos de José Agripino. Naquele mesmo dia, o advogado Samoel Alves da Silva diz ter sofrido um atentado. Segundo ele, o traficante José Agripino e mais sete homens armados foram até a casa dele cobrar explicações.
“Queriam esclarecer por que a policia foi atrás deles”, explica o advogado Samoel Alves da Silva.
Samoel conta que foi colocado em um carro e que, no acostamento de uma estrada, levou sete tiros a mando do traficante José Agripino.
“Esse rapaz, que depois eu fiquei sabendo que chama José Agripino, ele veio e falou: pode fazer o serviço aqui”, conta Samoel.
José Agripino é um foragido da Justiça. Dos quatro policiais acusados de receber propina do traficante, três estão presos. O delegado Paulo Henrique Correia Alves, que também responde na Justiça por extorsão mediante sequestro, é o único que aguarda o julgamento em liberdade.
Fomos à delegacia onde ele trabalha hoje e ligamos três vezes para o delegado Paulo Henrique, mas ele não retornou. O Fantástico também procurou os advogados dos outros acusados, mas só o do investigador Hélio Pavan Filho se manifestou.
“Os policiais, todas as vezes que foram ouvidos, de forma veemente, tanto o meu cliente como os outros, negam qualquer tipo de solicitação ou qualquer tipo de ilicitude por parte dos funcionários públicos envolvidos”, disse Daniel Leon Bialski, advogado de Hélio Pavan Filho.
Cometer um crime, ser preso e comprar a liberdade dentro de uma delegacia: em São José dos Campos, também no interior paulista, mais uma denúncia escandalosa. A câmera de um posto de gasolina filma quando um homem furta dois celulares, em agosto de 2011. Três dias depois, ele e um comparsa voltam para abastecer. O ladrão é reconhecido pelos funcionários, que chamam a polícia. A dupla é levada para o Primeiro Distrito policial.
Segundo o Ministério Público, os dois homens ficaram trancados em uma sala. De acordo com as investigações, os policiais exigiram R$ 20 mil, mas eles só tinham R$ 4,5 mil. Como garantia de que todo o pagamento seria feito, os policiais ficaram com dois cheques, assinados pelos suspeitos.
“Eles permaneceram na delegacia por cerca de quatro a cinco horas, se dispuseram a recolher valores para pagar o máximo possível. Só assim que eles foram libertados”, lembra o promotor de Justiça Sebastião José Pena Filho.
Com os bandidos em liberdade, o dono do posto diz que passou a ser ameaçado de morte. O homem que furtou os celulares quis que o comerciante pagasse os R$ 20 mil que teve de entregar aos policiais para não ser preso. Caso contrário, a quadrilha iria explodir o posto.
“Essas ameaças perduraram por vários dias. Foi efetuada a prisão do rapaz que extorquia o dono do posto. Os delegados de polícia não tomaram nenhuma providência, nem para cessar a extorsão que ocorria e as ameaças ao empresário, nem para apurar a corrupção dos policiais subordinados”, acrescenta o promotor.
Policial que comete crimes graves, como extorsão e sequestro, deve ser julgado como criminoso comum. Nos últimos anos, alguns desses casos se tornaram grandes escândalos. O que será que aconteceu? O Fantástico procurou as respostas.
Caso Juan Carlos Ramirez Abadia
Dezessete policiais civis foram acusados de extorquir dinheiro e sequestrar integrantes da quadrilha do traficante colombiano, preso em 2007, e que cumpre pena nos Estados Unidos. Na época, segundo as investigações, os policiais chegaram a exigir R$ 2 milhões para não prender integrantes do bando de Abadia.
“Falaram: ‘se você não trouxer o dinheiro, então vamos matar esse cara’”, lembra um homem.
Até agora, nenhum policial foi julgado e expulso.
Em outro caso grave, desta vez contra sete policiais da Dise, que combate o tráfico de entorpecentes em São José dos Campos, um homem foi levado para a delegacia suspeito de vender drogas e montou uma armadilha para denunciar os policiais. O suspeito ficou sozinho na cela e pensou em uma forma de denunciar a extorsão. Ele pegou o chip do celular e quebrou em três partes. Com um chiclete, colou os pedaços em locais diferentes: um no cano do chuveiro, outro no ralo e o último na parede, bem em cima da grade.
Essa foi a prova que desmentiu a versão dos policiais de que o suspeito nunca tinha passado pela delegacia. Ele ainda justificou um saque de R$ 20 mil no banco da seguinte forma: pagamento para policiais.
“Há indícios veementes de que foi uma extorsão mediante sequestro praticada por policiais, infelizmente”, comenta o promotor de Justiça Cássio Conserino.
Os policiais foram denunciados à Justiça há três meses, depois de sete anos de investigação. Todos continuam trabalhando na polícia. Mas por que será que a punição demora tanto tempo assim para ser aplicada? Para o delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo, Marcos Carneiro Lima, o problema está na burocracia:
“Existe o princípio da presunção da inocência. No Brasil, há uma distorção enorme, porque em cima dessa presunção e a série de possibilidades de recursos faz com que, muitas vezes, gere essa sensação de impunidade.”
Lembra da escuta telefônica que abriu essa reportagem? A conversa não tinha sido divulgada até hoje. Faz parte de um processo judicial em que três policiais da Delegacia de Combate ao Tráfico de Drogas de Campinas foram acusados de exigir R$ 15 mil de um suspeito, em 2008. Mesmo condenados pela Justiça, os policiais ainda não foram expulsos. Um deles é o investigador Itamar Gomes da Silva. E sabe onde ele trabalha? No plantão da DIG: aquela mesma delegacia usada, segundo o Ministério Público, como cativeiro por policiais. Procurado, o investigador Itamar não retornou nossas ligações.
Durante a apuração dessa reportagem, nossa equipe pesquisou a situação de 43 policiais civis, acusados de cobrar propina e até fazer sequestros para não prender criminosos. Segundo a delegacia-geral da Polícia Civil de São Paulo, apenas três deles foram demitidos; quatro foram considerados inocentes e 36 continuam trabalhando e recebendo salário.
“A nossa posição é: o policial que comete crime é pior que o bandido comum. A sociedade brasileira não tolera mais essa galopante corrupção, essa galopante criminalidade, principalmente quando envolve o agente da lei”, conclui o delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo, Marcos Carneiro Lima.
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