A ressurreição do ditador
Vargas Llosa traça um retratoimplacável do dominicano TrujilloTomás Eloy Martínez*
Há bibliotecas inteiras dedicadas à ascensão e à queda do generalíssimo Rafael Leónidas Trujillo Molina, ditador da República Dominicana de 1930 a 1961. Mas quem se aventurar nas páginas do último romance do peruano Mario Vargas Llosa, A Festa do Bode(tradução de Wladir Dupont; Mandarim; 450 páginas; 37 reais), poderá passar ao largo delas, pois este livro é a destilação prodigiosa de todo esse conhecimento. Mais ainda que os dados, importa aquilo que Vargas Llosa fez com eles: um retrato implacável do poder absoluto, num romance que se lê sem pausa do começo ao fim.
É preciso aproximar-se de A Festa do Bode em estado de inocência, deixando-se levar pelo autor sem perguntar a cada instante o que é mentira e o que é verdade, ou por que este ou aquele personagem, inspirado em algum bufão ou em alguma vítima do trujillismo, difere da pessoa real que lhe serviu de modelo. O que mais assombra em A Festa do Bode é o enorme trabalho de investigação, que sustenta o romance sem que jamais sejam notadas suas costuras. Como nos melhores textos de Vargas Llosa, aqui também assoma sua obsessão flaubertiana pelos detalhes que recriam o passado. Alguns sobreviventes recriminaram Vargas Llosa pela inexatidão desta ou daquela filigrana, baseados tão-somente nos registros da própria memória, sem no entanto considerar que o livro condensa centenas de documentos e aborda questões tão pequenas quanto o menu de restaurantes da década de 50.
Além de ressuscitar incontáveis memórias, este romance reúne também todas as técnicas e todos os gêneros freqüentados por Vargas Llosa, desde que estreou na literatura, com A Cidade e os Cachorros, até o recente Os Cadernos de Don Rigoberto. Ele é, de uma vez só, relato policial, melodrama, intriga política, história de uma conspiração, história de uma guerra e retrato de um ditador. Os tempos narrativos se movem com liberdade de um parágrafo a outro, sem que haja sobressaltos na leitura.
Mais de um crítico já indagou o porquê de Vargas Llosa ter decidido escrever um romance de ditador neste momento, 25 anos depois do surgimento de obras semelhantes, como O Outono do Patriarca, de Gabriel García Márquez, ou Eu, o Supremo, de Augusto Roa Bastos. Creio que a resposta é esta: porque agora é mais oportuno que antes. Em 1974 e 1975, os romances de ditador eram uma resposta ao afã dos poderes absolutos em apropriar-se da verdade. Agora que estão renascendo os autoritarismos, sob o disfarce de democracias rotas e manipuladas – no Peru de Alberto Fujimori, na Venezuela de Hugo Chávez –, os extremos inverossímeis da tirania trujillista servem para recordar que a aceitação dos primeiros abusos acaba na aceitação de abusos piores. Nos anos descritos por A Festa do Bode, tudo o que havia na República Dominicana era propriedade de Trujillo e de sua família: as indústrias, as Forças Armadas, o sistema de educação, as terras cultiváveis e até as mulheres, sobre as quais o ditador e seus filhos exerciam poderes medievais. Nunca é demais recordar que esses desmandos ocorreram neste continente. Podem ocorrer de novo.
Reuters |
Joaquín Balaguer: títere e, depois, herdeiro definitivo |
Cada romance cria seu próprio universo. Sua única obrigação é engendrar uma verdade que tenha valor por si mesma. Esse prodígio é difícil de alcançar num romance que trabalha sobre o tecido da história recente, porque neste caso cada leitor acredita possuir uma verdade distinta, que contradiz a ficção. EmA Festa do Bode, Vargas Llosa permitiu-se todos os malabarismos e irreverências com a realidade, enriquecendo o romance com a entrada e saída de seres vivos que ainda escrevem a história no presente. O Joaquín Balaguer de 93 anos que, cego e surdo, acaba de candidatar-se à Presidência da República Dominicana pode agora comparar-se ao astuto Joaquín Balaguer do romance, presidente títere de Trujillo e seu herdeiro definitivo. Não há operação novelística mais audaz que a de converter o presente em fábula. Os personagens históricos estabelecem, em A Festa do Bode, uma relação dialética com a imaginação. Ernest Hemingway escreveu, no prólogo de Paris É uma Festa, que as ficções podem sempre iluminar com luz nova coisas que antes foram narradas como fatos. A operação alquímica de Vargas Llosa em A Festa do Bode vai ainda mais longe. O Trujillo que prevalecerá na memória dos latino-americanos é o hipnótico personagem do romance, não o das biografias.
* O argentino Tomás Eloy Martínez é crítico literário e romancista, autor de Santa Evita, entre outros livros.
Os tubarões são testemunhas "A raiva surdia por todos os poros do corpo, rio de lava subindo até o cérebro, que parecia ferver. Sempre soubera controlá-la quando preciso: dissimular, mostrar-se cordial, afetuoso com o pior lixo humano, as viúvas, os filhos ou os irmãos dos traidores. Por isso ia cumprir trinta e dois anos levando nas costas o peso de um país. Ah, como era agradável deixar a raiva fluir quando não havia perigo para o Estado. As barrigas dos tubarões eram testemunhas de que ele não se havia privado desse prazer. Ele jamais havia se arrependido de nada." Trecho de A Festa do Bode |
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