A renúncia de Roberto Carlos
Por que, aos 70 anos, o “Rei” se sacrifica em nome da arte
Luís Antônio Giron
Revista Época
Luís Antônio Giron
Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV
Hoje ele acordou com 70 anos. Não é uma sensação agradável, nem mesmo para quem sabe que será homenageado com uma festa, receberá presentes, será lembrado. Mas Roberto Carlos não tem motivos para comemorar: sua coleção de perdas pessoais é enorme e difícil de suportar. Sua filha mais velha morreu há poucos dias. A mãe foi embora há um ano. O grande amor parece que também se foi há alguns anos. Ele acordou só, com seus 70 anos.
O herói vocal do Brasil não gosta que comentem sua vida privada. Talvez nem mesmo ele queira pensar nela. Mas há momentos inevitáveis, em que as canções e as emoções convergem ao mesmo ponto. E o músico teve de adiar o espetáculo que faria amanhã em Vitória, por ocasião de seu aniversário. A produção do show justifica que naturalmente Roberto está de luto. O que leva os admiradores a imaginar o que ele está passando agora que completa uma data tão importante e, de certo modo, tão grave – sobretudo para um artista que ostentou, nos anos 60, nos tempos da Jovem Guarda, o título de “o Rei da Juventude”. Com o tempo, virou apenas “o Rei”. Quem um dia foi jovem não pode mais ser jovem, eis a tragédia. Restam as emoções vividas, como Roberto diz numa canção, e a arte: a arte do canto, à qual se dedicou ao longo de 52 anos de carreira, e pela qual conquistou a glória. O que tudo isso significa? Nesta data querida, o músico brasileiro mais celebrado parece mostrar que sua vida foi dedicada à arte, a ponto de ter renunciado muitas vezes às suas alegrias, em nome da missão maior de cantar diante das multidões, compartilhando seu coração com elas. Não, como diz Paulo Coelho em um tuíte recente, alegria não é pecado, sacrifício não é virtude. Na arte de Roberto Carlos, porém, a oposição arte-vida faz todo o sentido. E é talvez a senha para compreender suas cerca de 450 composições próprias, para não mencionar aquelas que interpretou, infundindo nelas um sopro genial.
Sonhei esta noite com as canções do Roberto, certamente porque desde menino eu as tenha introjetado. Na semana passada, ao elaborar para a revista ÉPOCA uma lista de 20 delas, metade conhecida e metade não, percebi espantado que as sabia de cor. Logo eu, que esqueço tudo que é letra de música. Foi assim que sonhei com as canções, entoando-as inteirinhas, umas cinco ou seis, como se fossem minhas. Elas se gravaram no meu subconsciente. Imagino que muita gente também cante essas músicas sem nem pensar. Esse fenômeno pode indicar, entre outros, o papel fundamental de Roberto na cultura brasileira. Sua voz vibra nos ouvintes em um plano aquém da razão.
O que quero dizer é um truísmo, uma aparente obviedade: a trajetória de Roberto Carlos está registrada em suas canções. As emoções experimentadas tão intensamente pelo homem se impregnaram na sua arte. É o que acontece com todos os artistas. No entanto, examinadas em conjunto e em perspectiva, as músicas de Roberto contêm uma peculiaridade. Elas contam uma história de fragilidade, abandono, paixão, fé e resignação. Seu percurso é pedagógico, iniciático. Vida e obra parecem se confundir no início, para depois seguirem caminhos divergentes. O acidente que lhe tirou uma perna quando tinha 5 anos na cidade natal de Cachoeiro de Itapemirim, Espírito Santo (onde nasceu em 19 de abril de 1941), deixou evidentemente marcas profundas em sua personalidade – e em sua atividade artística. Ao iniciar a carreira, em 1959, incentivado pelo produtor Carlos Imperial, imitava o estilo do inovador vocal do momento: João Gilberto e sua bossa-nova. Cantava sambas líricos e melancólicos, como “João e Maria”, lançado em compacto simples em 1959.
A guinada alegre veio em seguida, quando adotou o rock’n’roll no estilo bubble gum de Tony e Celly Campello. Daí resultaram músicas como “Splish splash” (1962) e “É proibido fumar” (1964). Da alegria, Roberto saltou para a atitude rebelde. Isso aconteceu por volta de 1965, quando começou a lançar rocks atrevidos misturados ao rhythm’n’blues do parceiro Erasmo carlos. O exemplar mais interessante dessa fase é “Quero que vá tudo pro inferno”, um rock que preconiza a transgressão amorosa como solução para a felicidade. Líder da Jovem Guarda, Roberto consagrou o iê-iê-iê, como passou a denominar o rock que sua turma lançava no programas de televisão de domingo. Roberto e a Jovem Guarda exaltavam alegremente o consumismo e a realização de todas as pulsões.
Na segunda metade da década de 60, Roberto fez a apologia do sexo e da velocidade, em canções que podiam lembrar as dos Beatles, mas já continham o gérmen da originalidade. Em baladas como “As curas da estrada de Santos”, e “120... 150... 200 km por hora”, o poeta se atira à alta velocidade para assim não ter de encarar a vida. A velocidade dissipa as formas, mistura as cores e apaga o vínculo do sujeito com o mundo concreto.
No finalzinho dos anos 60, o lirismo e as canções românticas assomaram na obra do músico. Foi em 1971 que Roberto lançou, no seu terceiro disco com o título Roberto Carlos (quase todos levariam este nome doravante), sua canção mais famosa e bonita: “Detalhes”. Reparando bem, a melodia soa como uma seresta e seus versos, povoados de reticências, propõem a abnegação e mesmo a negação do amor. O poeta se dirige ao objeto amado, tomado pela saudade, o fatalismo e a incapacidade de obter prazer novamente. Os seguintes versos são o cerne da canção: “Se alguém tocar/ Seu corpo como eu/ Não diga nada/ Não vá dizer meu nome/ À pessoa errada... Pensando ter amor/ Nesse momento/ Desesperada você/ Tenta até o fim/ E até nesse momento/ Você vai/ lembrar de mim...” A projeção do poeta sobre o desejo da amada é dramática na junção do amor ideal com o carnal: nem ela, a musa, será capaz de chegar ao orgasmo sem seu velho amor. O cantor soa como um fantasma a rondar a vida de sua antiga amante, como num conto gótico. No fundo, todo amor resulta impossível, pois não é lícito viver a um só tempo o prazer físico e a transcendência espiritual. Não existe canção de Roberto mais romântica e emblemática que “Detalhes”.
Sobrevém um travo amargo nessa música, como em quase todas que advirão na vida do cantor. Ali se encontra a irreconciliável dualidade entre vida e arte, entre espírito e corpo, entre mundo e artista. Sua fuga posterior será rumo à religião, aos hinos católicos que veem na elevação do espírito a redenção dos pecados. Porque amar, no fim das contas, na obra do músico, não deixa de ser o mais sonhado dos pecados terrenos. O artista começou imitando os modelos que admirava, seguiu assumindo a atitude irresponsável da juventude transviada, mergulhou no desejo e finalmente viu Jesus Cristo.
Roberto é, assim, o exemplo do artista que se sacrifica à arte, que encara a vida como um campo de experiências que resultam em canções puras e simples. Para esculpir sua obra, como o escultor francês François-Auguste René Rodin, o músico se dedicou ao apostolado da grande arte, do trabalho interminável da canção perfeita. Um segredo que, infelizmente, ele próprio foi perdendo, à medida que quis subir aos céus da transcendência devocional. Curiosamente, ao abdicar da carne, o artista extraviou o que tinha de mais denso e lírico. Nesse sentido, nessa monumental e comovente derrocada que é sua arte, Roberto Carlos se revela profundamente romântico, não no sentido banal do termo, mas no da estética do movimento romântico do século XIX. A exemplo dos poetas românticos, ele se retirou do mundo dos homens comuns, isolou-se nos palcos dos estádios lotados e sacrificou sua arte a Deus. Mas talvez não tenha havido outra saída para o indivíduo e sua coleção de sofrimentos. Hoje ele acordou com 70 anos. E todos nós, seus admiradores, também despertamos com o fardo de tanta beleza.
(Luís Antônio Giron escreve às terças-feiras.)
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