terça-feira, 26 de abril de 2011

ANGOLA ( BENGUELA ) ÁFRICA - CONTOS " B E N Ú D I A "


conto
Título Benúdia Autor desconhecido



Os casos passaram-se conforme vos falo, embora haja muito boa gente que queira desmentir.

Dizem que não foi bem assim, que há exageros, há que dar um desconto de tantos por cento, enfim, essas manias de gente que desmente tudo. Mas, não façam caso, aqui nesta centenária cidade de Benguela sempre houve gente que tem a mania que eles é que sabem tudo e os outros nunca sabem nada. Sempre houve.

Agora, quem esteve naquele dia no largo da peça conhece, perfeitamente, que tudo se passou conforme este vosso narrador vos conta e o resto são realmente manias de quem pretende dar nas vistas. Manias, só isso.

Mas, vamos aos casos.

Foi o caso que eu e aquele meu amigo cabo-verdiano, pescador de profissão, há muito tempo que não nos viamos. Mas, muito tempo mesmo. Então foi uma casualidade quando nos encontramos naquela loja onde ele foi comprar uns anzóis e eu umas enxadinhas para limpar o meu jardim, que levava um capim já muito alto.

Eu e o empregado da loja discutimos, eu chamava aquela ferramenta de "enxada pequena"e o balconista chamava aquilo de " sacho" e fazia questão de usar esse nome, quando o meu amigo pescador me reconheceu.

Foi uma tremenda alegria, um grande Kandando, exclamações de "Nunca mais te vi!", "poça! Tanto tempo... onde tens andado?" e logo ali ficou combinado que no sábado seguinte eu iria almoçar em casa dele. " Ainda moras no mesmo sítio, ali na peça?" e ele respondia perguntando: " então, vou mais aonde?

Não falhei aquele calulú. Calulú de estalo. Rama, beringela, quiabos, todos os ingredientes tinham sido postos no lugar, quer dizer na panela. Mas, o segredo estava mesmo naquela combinação de peixe fresco e peixe seco, onde sobressaía o gosto salgado do seco. Maravilha.

Ataquei umas pratadas fortes, para não falar já no feijão de azeite palma com que rematei no final. Tudo regado com um tinto dos antigos, uma pomada à altura das circunstâncias, do reencontro entre dois kambas antigos que muito se gostavam.

Afastados os pratos de feijão, que eu já não podia mais, puz-me a arrotar. Era a provocação ao meu anfitrião.

Compadre - disse ele - estás a precisar daquele digestivo da ordem não é? Vamos já tratar disso.

Entrou dentro de casa, que nós estávamos a comer no quintal, à sombra de uma velha mangueira e voltou com uma garrafa branca na mão. Assentou a garrafa na mesa, com estrondo.

Os meus olhos saltaram, querendo sair das órbitas. O meu largo sorriso tinha explicação: era o famoso "grog", em que o amigo cabo-verdiano era um exímio e consagrado fabricante. Um fabrico caseiro, só para ele e para os amigos. Uma aguardente das pesadas.

Coadjuvado por uma xícara de café forte, o primeiro trago de grog foi de uma acentada, dissolvendo tudo à sua passagem, aquecendo o estômago e o coração, qual onda cheia de vida.

Entretanto, chegara um mensageiro que soprou qualquer coisa no ouvido do dono da casa e este, levantando-se, disse para mim:

- Compadre, vou aqui resolver um pequeno assunto e venho já. Mas, fica à vontade e a garrafa de grog está mesmo aí.

Já dando meia volta e quase de costas, o meu anfitrião ainda ajuntou:

- Olha aí no largo em frente há já um futebol dos miúdos. Podes te distrair, e apreciar, compadre.

O caçula do pescador prontificou-se a carregar um banquinho para a porta do quintal. Eu olhei para o meu copo, que ainda tinha um rabo de grog no fundo, olhei para a garrafa e não hesitei: envolvi o copo com uma mão, cafriquei a garrafa com a outra e segui o caçula que transportava o banquinho de bimba.

Cá fora, frente à frente com aquele canhão implantando no centro do largo, sentei-me no banquinho pus a garrafa de um lado, o copo de outro e refastelei as costas no muro de adobe. Dei um longo suspiro, de quem está bem instalado e tratei de elevar o nível do grog no copo. Fui sorvendo devagarinho, enquanto dava um olhar a toda dimensão do largo, numa mirada geral.

Crianças disputavam um trumuno renhido, aproveitando o largo espaço do largo da peça.

Eram crianças de vários tamanhos, feitios e cores, dos 5 aos,8 possivelmente, mantendo um jogo de futebol muito populoso. Além de me ter apercebido que ambos os times em jogo seguiam a técnica de "todos atrás da bola", também me parecia que qualquer dos times tinha mais de 11 jogadores. Pareceu-me isso, não vou jurar, pois eu quero, tão somente, narrar tudo exactamente como se passou, sem aumentos nem exageros. Como viram e ouviram estes olhos e estes ouvidos que a terra há-de comer.

A certa altura, o nível de agitação do jogo baixou. Comecei a ver uns jogadores parados, um burburinho, idas e vindas para aqui e para acolá. Imediatamente vislumbrei o que se passava. Quiçá num remate mais potente, a boal saíra dos limites do campo improvisado e fora alojar-se bem no meio de umas espinheiras, uns tufos de capim à mistura com umas plantas rasteiras cheias de picos.

E então, aquele mundo todo de garotos hesitava, olhando ora para os seus pés descalços, ora para os picos que os mesmos teriam que enfrentar, caso quizessem ir buscar a bola.

Uma cortina cerrada à volta do chão coberto com as espinheiras.

Foi aí que um garoto, pequeno, frágil magro de se lhe ver as costelas que pareciam récoréco, furou por entre aquela cortina de miúdos, passou por entre as pernas de uns, restejou por baixo das pernas de outros e avançando para as espinheiras foram até ao centro, pegou na bola e saiu correndo para o campo de futebol, com o esférico debaixo do braço.

Uma tremenda ovação saudou o efeito daquele miúdo esqueleto e de aspecto miserável:

- Kabocoio! Viva o Kabocoio!
- Kabocoio não tem medo de picos!
- Os pés dele estão blindados, não sente picadas de picos! Kabocoio!

E todo o mundo voltou para o terreno de jogo, onde num extremo, se encontrava uma minúscula figura talvez vinda mesmo do Bocoio. Com um olhar triunfante e um pé bem magro assente sobre a bola recuperada dos picos.

Um garoto barrigudo, com um olhar feliz meio de prazer, meio de agradecimento, foi directo ao menino magro para recuperar a bola. Só que o chamado de Kabocoio, no momento exacto em que o outro ia puxar a bola, manda uma finta de corpo, faz que vai, mas, não vai e subtrai o esférico do alcance do outro com um gesto rápido do magro pé.

Outra ovação, delírio total:
- Kabocoio! Kabocoio finta! Pelé é pouco p´ra ele!

Esta cena repetiu-se uma, duas, três, quatro, cinco vezes, com quantos jogadores foram ter com o menino magro para recuperarem a bola. Sempre o outro os esperava, fintava e fugia com a bola, debaixo de uma ovação de "Kabocoio finta bué".

Até que o ambiente começou a aquecer um bocado. Os jogadores de futebol interrompido começaram a perder a paciência.

Um jogador alto e forte, dos mais crescidos, que até aí só observara, destacou-se, olhou para os demais e anunciou:

Agora, vou lá eu e vamos ver se o gajo dá a bola ou não dá.
E foi directo ao Kabocoio.

A mesma simulação, a mesma finta e... só que aí ouve-se um tremendo estampido, forte como o tiro de uma espingarda e vimos o Kabocoio a ser projectado a uma distância de dois, três quatro, cinco ou mesmo dez metros, bem medidos.
O outro garoto espetara-lhe uma tremenda bofetada que o atirou para longe, libertando a bola.

Deu contestação popular:
- Não bate no miúdo! Cobarde! Agora, bate em mim, se és homem! - Gritavam uns assistiam.

Imediatamente estalou uma guerra generalizada de todos contra todos. Pontapés, socos, baçulas, até paus e pedras. Um inferno de garotos, gritos, poeira e pancadaria. Havia um grupo definido, talvez os que haviam sido fintados, que só procuravam bater no menino do Bocoio.

Este praticamente desaparecia, envolvido em tanto soco e em tanto pó. Ninguém acudia, ninguém conseguia apartar aquela confusão, só gritavam de longe para não lutarem. Ninguém se aproximava.

O menino do Bocoio, meio soterrado, lançou, então, um grito profundo e lancinante, cheio de dor, que ecoou até aos contrafortes do Morro do Xingo, no caminho para as planuras do Bocoio:
- Hossi! Hossi!

Ouviu-se um grande estrondo e a terra tremeu desde as profundezas. O chão rasgou-se num de repente e vimos um monstro enorme, de cor preta e olhos de fogo, dentes com espadas, riscar os céus e cair como um rio mesmo ali, no Largo da Peça.

O monstro precipitou-se no meio dos meninos em luta. Dentada para aqui, dentada p´ra ali, rugidos e arranhadas, aquele ser vindo do outro mundo poz todo mundo a correr, fugindo do terreno da luta, apavorados.

E no terreno da luta só vimos o Kabocoio sentado no chão, todo esfarrapado e cheio de pó, abraçado a um enorme cão preto e chorando baixinho:
- Hossi! Hossi, meu amigo. Eu sabia que tu vinhas.

Ninguém se aproximou. O cão e o menino ficaram sós, conversando no meio do largo, um lambendo as contusões do outro, acarinhando o focinho dele e ali ficaram, ainda, um longo tempo, abraçado, o cão e o menino.

Até que o sol começou a pôr-se para lados do mar. a noite vinha a caminho.

Eu levantei-me do meu banquinho de bimba. Recolhi o copo e a garrafa de grog. Fui caminhando dentro do quintal.

O meu amigo pescador ainda perguntou:
- Porque olhas tanto para traz?

- Eu não disse nada, mas, olhando para traz, olhando para a lua que se levantava sobre o Bairro da Fronteira, eu divisei o disco do astro da noite um cão e um menino caminhando lado a lado, num trote sossegado e feliz.

Só estavam eles os dois, caminhando dentro da lua. Lá no alto.

Aug 26

Angola Acontece
Autor desconhecido

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