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segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011
FANTÁSTICO - LADRÕES DO DINHEIRO PÚBLICO - BRASIL
Fantástico visita cidades com casos mais graves de desvio de dinheiro público
Em Curralinho (PA), São Sebastião (PA) e Tefé (AM), os milhões de reais que deveriam ir para saúde e educação são desviados.
O Fantástico traz uma reportagem capaz de causar indignação. Ela mostra até que ponto o desvio de dinheiro público deixa populações inteiras sem saúde, sem educação, vivendo em condições sub-humanas. São milhões de reais que o Governo Federal libera para a saúde, a educação, o saneamento em cidades do interior, mas esse dinheiro some, e ninguém sabe direito para onde vai. Veja na reportagem de Eduardo Faustini.
Acesse os relatórios da CGU sobre todos os municípios fiscalizados.
No Hospital Municipal de Curralinho, no estado do Pará, uma mulher se indigna: “Todo mundo se esconde”. Ela não consegue ser atendida. “O hospital está jogado às traças, não tem ninguém”, reclama.
Os cidadãos do município vizinho, São Sebastião da Boa Vista, e de Tefé, no estado do Amazonas, também sofrem com o mesmo abandono do poder público. “Aqui é lixão do hospital, é lixão da cidade e é lixão do matadouro. Tudo vem ser jogado aqui”, revela Berenice.
“Não tinha legumes. Eu tinha que levar de casa, senão a criança não merendava”, afirma uma mulher.
Essas três cidades – Curralinho (PA), São Sebastião (PA) e Tefé (AM) - recebem dinheiro do Governo Federal, mas milhões de reais que deveriam ir para a saúde, educação e saneamento são desviados. Os municípios brasileiros são fiscalizados pela Controladoria Geral da União (CGU), por sorteio. Uma das missões da CGU é defender o dinheiro público.
“Nós sorteamos 60 municípios de cada vez, no auditório da Caixa Econômica, no mesmo lugar onde se faz o sorteio da Mega-Sena, aberto para a imprensa, para todo mundo que quiser ver”, afirma o ministro Jorge Hage Sobrinho, da Controladoria Geral da União.
No último sorteio, os relatórios da CGU apontaram São Sebastião da Boa Vista, Curralinho e Tefé como os casos mais graves de desvio de dinheiro público. E o Fantástico mostra como esses desvios prejudicam a população.
São Sebastião da Boa Vista é uma cidade de 22 mil habitantes que fica a 12 horas de barco de Belém, a capital do Pará. No hospital da cidade, funcionárias jogam fora o lixo hospitalar como se fosse lixo comum.
“É um absurdo. A universidade está ali, o prédio do INSS que estão construindo lá, o estádio lá, a quadra aqui: tudo próximo do lixão, tudo no lado do lixão, e o lixão no meu quintal, praticamente”, conta a dona de casa Benedita Magalhães.
No local, estão seringas usadas, com as agulhas prontas para espetar, ferir e contaminar. O carpinteiro Sebastião Pinto conta que o filho já se feriu no lixão. “Meu filho, o Júlio, já foi furado com agulha umas duas vezes já, com seringa. E ninguém toma providência nenhuma”, diz,
“A seringa desse jeito ou qualquer outro material perfuro-cortante no ambiente hospitalar tem que ser acondicionado em uma caixa apropriada. Essa caixa tem que ser transportada de forma apropriada, por uma equipe que foi treinada, para ser incinerado”, explica o professor de infectologia Edmilson Migowski, da UFRJ.
Curralinho, com 28 mil habitantes, fica a 12 horas de barco de Belém. O repórter Eduardo Faustini encontra o mesmo problema: seringas usadas misturadas ao lixo comum.
“Já sou vereador nesse município há seis anos. São seis anos cobrando, colocando no orçamento a construção do forno crematório, e até agora nada. Não tem resposta nenhuma”, aponta o vereador Marquinho, de Curralinho (PA).
Segundo a CGU, Curralinho não conseguiu comprovar como gastou R$ 9,7 milhões.
Vamos à cidade de Tefé, que tem 65 mil habitantes e fica a 36 horas de barco de Manaus. O perigo aumenta quando as chuvas escondem as seringas na lama.
“Alguém que for tentar catar lixo ali para poder reciclar uma garrafa Pet, por exemplo, pode se ferir. Ao se ferir, pode então adquirir algumas doenças. As principais são hepatite B, hepatite C ou o próprio HIV”, ressalta o professor de infectologia Edmilson Migowski, da UFRJ.
Em São Sebastião da Boa Vista, você conheceu Benedita, a vizinha do lixão. Pois quando ela sai de casa para cuidar da saúde, encontra mais dificuldade. Ela e outros cidadãos tentam marcar consulta no hospital público.
“Nós ficamos aqui até 23h para pegar a ficha para vir se consultar”, revela uma menina. “Eu vou ficar aqui até 23h para pegar uma ficha para o meu esposo, que está doente, precisando de médico”, diz uma senhora.
Em Tefé, a agricultora Neide da Costa de Castro não conseguiu ser atendida nem marcar consulta. “Eu fui ao médico, só que o médico não me atendeu, porque não tinha médico, tinha só uma enfermeira no hospital”, revela.
Em Tefé, como nas outras duas cidades, enfermeiros e técnicos de enfermagem trabalham no lugar de médicos. Eles fazem consultas e prescrevem remédios sem um diagnóstico feito por um médico.
“A verdade é que, no município, a maior parte do serviço do médico quem faz são os técnicos de enfermagem, não por irresponsabilidade, mas por não querer se omitir ao atendimento”, aponta o vereador Reinaldo de Souza e Silva, de São Sebastião da Boa Vista (PA).
Veja o que acontece em um atendimento feito sem a orientação de um médico: “Esse remédio, a gentamicina, é usado diariamente aqui. Tudo foi receitado por um enfermeiro”, comenta uma técnica em enfermagem.
Em um único dia, esse antibiótico foi receitado pelo menos 21 vezes. “A gentamicina pode provocar dano tanto ao rim quanto ao ouvido. Não pode ser passado de qualquer maneira”, alerta o presidente da Associação Médica do Estado do Rio de Janeiro, Carlindo Machado e Silva.
Em Curralinho, milhares de remédios são desperdiçados. Pílulas, ampolas e vacinas, muitos comprados pelo Ministério da Saúde, estão com a validade vencida.
O que é jogado fora faz falta no posto de saúde, fechado há quatro meses. “Porque a gente não tem medicamento. Não tem como atender uma pessoa caso aconteça um acidente com corte. Não tem para a gente fazer curativo”, destaca o agente de saúde Jaime Pantoja, de Tefé (AM).
O repórter Eduardo Faustini chega à outra comunidade. Nela, as condições de trabalho da técnica de enfermagem Francisca Sá Barreto são as piores possíveis. Ela não tem nem luvas para tirar os pontos da cesariana de uma paciente. “Não estou com luva, porque não tem”, afirma. “Já costurei oito pessoas com agulha de costurar roupa”.
Francisca explica que limpa o material hospitalar em uma pia e que a torneira não tem água. Então, enche um balde com a água do rio: “Acabou o procedimento, eu venho para cá, coloco aqui e pego o sabão. Eu tenho que encher com a água do rio. Eu pego, coloco o material de molho aqui por uns 20 minutos, depois eu venho, meto a escovinha e vou colocar nesse fogão para esterilizar”, explica.
“É feito tudo de uma maneira muito rudimentar, colocando em risco os próximos pacientes, nos quais ela for usar esse material, que certamente estará contaminado”, afirma o presidente da Associação Médica do Estado do Rio de Janeiro, Carlindo Machado e Silva.
Mas por que técnicos e enfermeiros fazem o papel de médicos? “Os médicos não querem vir para o interior”, justifica o prefeito de Tefé (AM), Jucimar de Oliveira Veloso.
E os salários são bons. Muitos médicos aceitam, e um ou outro aproveita para ganhar mais um dinheirinho extra. “Um médico ganha cerca de R$ 1,3 mil por dia, para consultar 15 pessoas de manhã e 10 à tarde. Depois, ele não atende mais e vai para o consultório dele particular”, diz o prefeito interino de São Sebastião da Boa Vista (PA), Doriedson Teixeira da Silva.
Esse é o caso do médico Itamar Cardoso. Em um mesmo dia, ele atende no hospital público e depois no consultório particular, onde está o único aparelho de ultrassonografia do município.
“No dia em que ele está batendo ultrassom, ele ganha como médico de ultrassom e ganha também como médico do nosso município. Ele acumula dois salários só em um dia”, destaca o prefeito interino.
O Fantástico foi atrás do doutor Itamar. Ele marcou no hospital público às 15h, mas um funcionário do hospital não permite a entrada da equipe do Fantástico.
Funcionário: Fica lá fora.
Fantástico: Eu vou ficar lá fora, mas ele marcou comigo às 15h.
Funcionário: Quando ele chegar, eu mando vocês entrar.
Fantástico: Está bom. Estou aqui fora, aqui na porta.
O funcionário tenta impedir a nossa equipe de trabalhar. Ele coloca a mão na câmera tentando impedir a filmagem. O doutor Itamar acaba dizendo que não quer gravar entrevista.
A falta de equipamentos é uma realidade também nos laboratórios públicos, que não têm aparelhos nem materiais para garantir a segurança do técnico e do paciente. “A gente coloca cloro, detergente e fica até soltar o material. Depois, a gente ainda escova com sabão. E assim a gente faz uma mistura para poder limpar. Não é o ideal. Tinha que ser descartável”, revela uma funcionária.
As lâminas são lavadas no banheiro. “Se você tiver que reutilizar um material. Uma lâmina de vidro, por exemplo, tem que ser autoclavado. Autoclavar é um aparelho que esteriliza. Ele usa a uma temperatura extremamente elevada que mata vírus e mata bactéria”, explica o professor de infectologia Edmilson Migowski, da UFRJ.
Toda essa precariedade ocorre em um município com altíssimo índice de malária, cerca de metade dos 28 mil moradores já contraiu a doença. Muitos, mais de uma vez.
“Aqui na minha casa todo mundo já pegou malária. Meu pai pegou 14 vezes. Eu peguei cinco. Todos os anos, nós pegamos. Minha mãe pegou oito”, revela o estudante Michel Gonçalves.
“Em 2010, nós tivemos quase 13 mil casos de malária. Em 2011, se medidas não forem tomadas, certamente nós vamos aumentar esse número. E isso é muito alarmante para um município do tamanho de Curralinho”, destaca o coordenador de endemias do Pará, Luiz Roberto Pereira.
Alarmante também é um matadouro municipal. “O pessoal não tem o equipamento de proteção individual. O chão está totalmente imundo. As paredes e o chão não são apropriados. O transporte é totalmente irregular. A carne tem que ser transportada sob proteção, refrigerada. Não tem muita diferença do ponto de vista sanitário você transportar a carne na carroça e em uma caçamba de lixo”, aponta o professor de infectologia Edmilson Migowski, da UFRJ.
O que os funcionários entendem como higiene é lavar o estabelecimento com água, e tudo vai parar no rio que é de onde sai a água usada pela população. “Quando você joga sangue in natura na água, você acaba favorecendo a proliferação de bactérias”, explica o infectologista.
Segundo a Controladoria Geral da União, o município de São Sebastião da Boa Vista recebeu do Ministério da Saúde R$ 1,2 milhão para implantar o sistema de esgoto. Uma construtora recebeu o dinheiro, mas a prefeitura não comprovou a execução dos serviços.
“Nós não ficamos só no processo para ver a comprovação da despesa, para ver se houve a licitação ou não, porque, às vezes, o processo está muito bonitinho. Quando veem no processo que houve uma licitação, quais as empresas que ali apareceram como tendo participado, os nossos auditores vão procurar a empresa no endereço”, afirma o ministro Jorge Hage Sobrinho, da Controladoria Geral da União.
Nosso repórter vai até duas empresas que venceram licitações da prefeitura de Curralinho, no Pará. Uma foi convidada a disputar o fornecimento de materiais de escritório; a outra, o de materiais de higiene e limpeza.
Fantástico: Vocês fizeram negócio na prefeitura?
Anisérgio da Silva Oliveira: Meu pai fez.
Fantástico: Mas a empresa é tua ou do teu pai?
Anisérgio da Silva Oliveira: É dele.
Fantástico: Todas elas?
Anisérgio da Silva Oliveira: Não. Essa aqui é dele. Essa aqui é minha.
A empresa de Anisérgio da Silva Oliveira tem o nome dele. Ela foi uma das vencedoras da licitação para fornecer material de escritório. Sobre a empresa do pai, ele diz que não sabe nada. “É parte de papelaria. Do meu pai, eu não sei. Só sei da minha”, diz Anisérgio.
Como ele não sabe? As duas empresas ficam lado a lado. A empresa do pai se chama Oliver Comércio e Serviços de Obras e foi uma das escolhidas para fornecer material de higiene e limpeza.
A CGU desconfia que o processo foi fraudado, porque as compras custaram mais R$ 200 mil para cada tipo de material. A lei diz que, se o valor passa de R$ 80 mil, não pode haver licitação por convite. O que a prefeitura tinha que ter feito era outro tipo de licitação, a chamada tomada de preços.
O ex-prefeito de Tefé Sidônio Gonçalves perdeu o mandato no ano passado, porque foi eleito prefeito pela quarta vez, o que é proibido. Quando ele era prefeito, a cidade recebeu do Governo Federal R$ 24,6 milhões para a educação. A CGU descobriu que a prefeitura não comprovou como gastou quase a metade desse dinheiro: R$ 11 milhões.
Segundo o novo prefeito, Jucimar de Oliveira Veloso, que tomou posse esta semana, a situação das escolas é péssima. “Nós temos mais de 48 escolas sem condições, totalmente sem condições de ter aula. Infelizmente, é essa a nossa realidade”, destaca.
O aluno que não leva comida de casa passa fome. “Não tinha legumes para fazer sopa. Tinha que levar de casa, senão a criança não merendava, para fazer a sopa. Quando tinha, quando não era rapadura, banana verde que eles davam para a criança”, conta Susimara Silva da Cruz, mãe de aluno. “Chegava lá e, às vezes, não tinha merenda. Voltava e não tinha merenda”, comenta Neide da Costa de Castro, mãe de alunos.
A situação não é melhor nas outras duas cidades fiscalizadas pela CGU.
“Não tem carteira para todos. A carteira que tem são poucas, não é para todos. Quando vêm todos os alunos, tem uns que têm que sentar no chão”, conta a professora Maria do Socorro de Farias, de Curralinho (PA).
“Quando chove, enche, e a gente tem que pular pela janela para poder dar aula, para os alunos terem acesso à sala de aula. As salas enchem. Está precisando de uma boa reforma”, diz a professora Francisca Rodrigues da Costa, de São Sebastião da Boa Vista (PA).
Procuramos o prefeito de São Sebastião da Boa Vista (PA), e ele não quis receber a nossa equipe.
Já o prefeito de Curralinho começa dizendo que todo o dinheiro recebido do Governo Federal foi aplicado corretamente. “O recurso da educação foi aplicado na educação. Os outros recursos, no caso, da saúde, mesma coisa”, diz o prefeito de Curralinho (PA), Miguel Santa Maria.
Mas, em seguida, ele admite que as contas da cidade não fecham: “Quando a CGU vai ao nosso município, é bom. Ela achou os problemas, e a gente vai responder já consertando”.
“Eu diria que hoje nenhum gestor, seja prefeito de município, seja dirigente de órgãos estadual ou federal, pode mais confiar integralmente na impunidade. Não pode. Mesmo que o processo judicial demore, que ele possa confiar que dificilmente chegará a se posto na cadeia, mas há outros tipos de sanções. São punições administrativas, são providências que o obrigam a devolver ao erário o dinheiro desviado. Além disso, há aquela sanção difusa da opinião pública, da sociedade, porque a imprensa divulga, toda a população fica sabendo o que aconteceu”, afirma o ministro Jorge Hage Sobrinho, da Controladoria Geral da União.
“Cada relatório de cada auditoria que se conclui, nós encaminhamos para todo mundo que tenha alguma coisa a ver com o assunto: a Câmara do município, o prefeito municipal e o ministério que repassou os recursos para que ele tome as providências”, destaca o ministro.
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