BANCARROTA
Depois de dar calotes em série em bancos privados, João Lyra
teve a falência de seu conglomerado decretada pela Justiça
Personagem que ilustrou como poucos a história de coronelismo do Nordeste brasileiro, o deputado federal João Lyra (PSD-AL), 82 anos, vive sua decadência empresarial e política. Dono de um império que inclui imensas extensões de terra, imóveis de luxo, cinco usinas de cana-de-açúcar, empresas de comunicação, táxi aéreo e até uma fábrica de adubos, um dos usineiros mais importantes do País está afundado em dívidas e dá adeus ao título de parlamentar mais rico da Câmara dos Deputados. Antes dono de um prestígio inabalável, que lhe rendeu dois mandatos em Brasília e poder de influência na política de seu Estado natal, Alagoas, Lyra vive hoje sua ruína sob o fantasma da falência e do ostracismo. Para traçar o caminho da decadência do coronel, ISTOÉ percorreu a sede das empresas do parlamentar. Deparou-se com portas lacradas e seguranças armados, ouviu funcionários demitidos, advogados e representantes do Judiciário ligados ao processo de recuperação judicial do Grupo João Lyra.
Em valores atualizados, o deputado deve R$ 2 bilhões, dez vezes o patrimônio pessoal declarado por ele à Justiça Eleitoral há dois anos. Em setembro, o juiz Marcelo Tadeu decretou a falência de seu conglomerado, entregando o comando de suas empresas a interventores. “Não dá para fechar os olhos para os débitos e essa situação vinha se arrastando há anos”, disse o juiz, que alega ter sofrido ameaças de morte por conta de sua atuação em desfavor de João Lyra. Há apenas dois meses, cinco auditores fazem uma devassa nas contas das usinas. As primeiras análises mostram que havia recursos em caixa para cumprir as negociações judiciais dos débitos, apesar dos argumentos de crise no setor sucroalcooleiro e das enchentes que atingiram Alagoas nos últimos anos. “A situação parece bem diferente do que era passado oficialmente nas negociações. Eles vinham dando calote em todo mundo deliberadamente”, resume um dos credores envolvidos no processo. Na ação de falência do Grupo João Lyra, que corre em sigilo, seus advogados não negam os débitos. Entretanto, dizem que não concordam com os critérios da cobrança. Também apelam para a importância do grupo na geração de empregos, especialmente em Alagoas e Minas Gerais. São cerca de seis mil funcionários diretos.
A história da queda de Lyra começa em 2006, quando o atual deputado gastou parte da sua fortuna em uma campanha desesperada pelo comando do governo de Alagoas. Documentos obtidos com exclusividade por ISTOÉ mostram que desde então as dívidas do usineiro começavam a se acumular e as cobranças judiciais se amontoavam no departamento jurídico do grupo. Na época, Lyra ainda gozava de prestígio de coronel e, apesar de ter perdido a eleição e cerca de R$ 60 milhões que gastou com a campanha, conseguiu usar sua influência para protelar as ações de cobranças, em vez de negociá-las.
Para continuar mantendo seu alto padrão de vida, e as empresas em funcionamento, Lyra iniciou uma estratégia de calotes em série contra bancos privados, tanto estrangeiros como nacionais, e também entidades públicas. A cada ano e período de entressafra da cana-de-açúcar, seu grupo entrava com pedidos de empréstimos em diferentes bancos. Conseguiu abocanhar quase R$ 1 bilhão de pelo menos três instituições estrangeiras (um banco francês, um belga e um inglês), além do Banco do Nordeste, Bradesco e até do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Mas o usineiro, mesmo com o lucro da safra, deixou de pagar os empréstimos. Quando pressionado, renegociava a dívida. Fez isso ao menos seis vezes, segundo o processo de falência do Grupo João Lyra, obtido pela reportagem. Em 2010, a situação chegou ao limite. Os bancos estrangeiros, credores rurais e funcionários com salários atrasados decidiram cobrar a dívida de Lyra.
O calote bilionário se soma à lista de abusos alimentados pela impunidade. A influência de Lyra no Judiciário alagoano é conhecida há tempos. Nos anos 1990, ele conseguiu se livrar de acusações de assassinatos, apesar dos depoimentos e indícios contundentes de sua participação nos crimes. Em 1991, Lyra foi acusado pelo Ministério Público de mandar matar o amante da ex-esposa. Cinco anos depois, o parlamentar foi apontado como o mandante do assassinato do fiscal de renda Sílvio Vianna, que o cobrava por impostos devidos à União. O deputado, por meio de sua rede de influência, conseguiu engavetar os processos, que acabaram prescrevendo depois que ele completou 70 anos.
A última demonstração de poder veio das mãos do amigo e presidente do Tribunal de Justiça de Alagoas, Sebastião Costa Filho, que, durante um plantão de domingo, suspendeu o processo de falência de Lyra. Alegou que a decisão do juiz Marcelo Tadeu não foi imparcial. Tadeu é antigo desafeto do deputado. Mas a decisão de Costa Filho não teve efeito prático. O caso já está no Superior Tribunal de Justiça, por conta de recurso do próprio Lyra. ISTOÉ ouviu dois ministros do STJ. Apesar de ainda não conhecerem a fundo o processo, ambos contaram que em casos semelhantes a corte já decidiu que o dinheiro do dono das empresas deveria ser usado para quitar as dívidas.
A crise nos negócios deixou o parlamentar com a saúde debilitada. A convivência conflituosa com a família tem agravado as doenças. Pai de quatro filhos, entre eles Tereza Collor, a musa do impeachment, o deputado não fez sucessores. Não treinou herdeiros naturais para cuidar dos seus negócios e a família não se encontra com frequência. Nas últimas décadas, suas companhias são assessores muito bem pagos, seguranças e, recentemente, a nova esposa, quase 30 anos mais jovem. Voa de jatinho particular entre Brasília e Maceió, e de helicóptero dentro da cidade.
Ao transitar nos corredores do Congresso, o parlamentar mantém-se distante das discussões e das rodinhas de políticos. Sempre circula pelas laterais, evitando o centro do plenário, onde as televisões captam imagens em tempo real e os deputados se digladiam na disputa por microfones. Isso quando ele aparece na Casa. Além de ser o mais faltoso, tendo comparecido a menos de 30% das sessões de 2012, o deputado apresentou este ano apenas quatro projetos. Três eram simples sugestões a ministérios, e outro foi elaborado sob medida para beneficiar a si mesmo. Pediu à Secretaria de Patrimônio da União a redução do laudêmio e da taxa de ocupação cobrados de quem mora em áreas pertencentes à Marinha. Ocorre que Lyra vive em uma luxuosa cobertura à beira-mar em Maceió e paga cerca de 3% do valor do imóvel à União. Na justificativa do projeto, o deputado alega que as taxas são abusivas e que também é preciso rever a dívida das famílias que acumulam débitos de laudêmio. Ele não paga a taxa há cinco anos. Pelo visto, o coronel continua o mesmo. Mas a possibilidade de que finalmente seja alcançado pela Justiça mostra que os tempos mudaram.
Foto: Orlando Brito