terça-feira, 3 de abril de 2012

PINHEIRINHO ( S. JOSÉ DOS CAMPOS/SP) E A TEORIA GERAL DO DIREITO



O caso Pinheirinho e a Teoria Geral do Direito

Elaborado em 02/2012.
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No caso Pinheirinho, o direito individual de dispor do patrimônio foi tido como sinônimo equivocado de uma sociedade livre, igualitária, segura e juridicamente sem espaço para um “direito social e coletivo”.
No início do ano de 2012, na cidade de São José dos Campos, em São Paulo, foi expedida  ordem judicial de reintegração de posse para desocupação de um terreno no bairro do Pinheirinho, pertencente a uma massa falida e ocupado por milhares de pessoas. Após toda uma artimanha jurídica e policial-estatal, a ordem foi cumprida, ocasionando o caos humanitário à população local, o que inclusive gerou repudia de órgãos nacionais e internacionais de proteção e tutela dos direitos humanos. Como vítimas deste caos, estima-se que mais de cinco mil pessoas perderam seus lares, bens e histórias.
Inúmeros juristas, sociólogos, jornalistas filósofos e políticos se manifestaram sobre o tema que até o momento de publicação deste artigo ainda causa repulsa e repercussão na mídia e nos meios sociais, políticos e jurídicos do país.
Mas de todas as manifestações publicadas pela mídia, salta aos olhos o artigo publicado no Jornal “Folha de São Paulo datado de 17.02.2012”, subscrito pelo Senado Eduardo Suplicy e pelo Deputado Federal Ivan Valente, que relatam em breves palavras o desenvolvimento fático e jurídico do caso e lá pelas tantas questionam e provocam as decisões judiciais que ensejaram as atrocidades[1].
Pois bem. A tragédia social talvez sirva de proposta reflexiva para a Ciência do Direito, ao menos para que o estudante e jurista possa relembrar as lições preliminares e que se chamado a participar de um processo decisório relevante como este em debate, não opte por uma decisão equivocada e que comprometa a Ordem Social, Jurídica, Democrática e Republicana. Assim, passemos à análise de alguns pontos interessantes.
Por primeiro, cumpre lembrar que dentre as diversas concepções de direito, didaticamente, opta-se por aquela em que “poder-se-á dizer que o direito positivo é o conjunto de normas estabelecidas pelo poder político que se impõe e regula a vida social de um dado povo em determinada época.” E é certo que: “é mediante normas que o direito pretende obter o equilíbrio social, impedindo a desordem e os delitos, procurando proteger a saúde e a moral pública, resguardando os direitos e a liberdade das pessoas.”[2]
Da concepção apresentada tem-se que “direito é um poder” de tentar este equilíbrio social e que serve para impedir a desordem, ou seja, de manter um controle social. Razão o é que o direito objetivo, como complexo de normas jurídicas que regem o comportamento humano prevê um conjunto de sanções para o seu descumprimento, sendo o direito subjetivo aquele que recebe a autorização normativa para fazer ou não algo conforme os interesses e bens envolvidos.[3]
 Não é crivo ou mesmo esperado que o interprete ou aplicador da norma jurídica possuindo “o poder” não apenas de dizer o direito como de aplicá-lo e assim manter a ordem e o Estado de Direito utilize-o de forma subversiva e destoante aplicando uma parte restritiva da norma em descompasso com  as demais regras e princípios sistêmicos. Critica-se pois “visão obtusa e centralista” do operador do direito, que não consegue entender que a norma não é válida por si só se não aplicada no contexto sistêmico e social, conforme preleciona a teoria “pós-positivista” ou “neoconstitucionalista”.
Por exemplo, e prosseguindo, o direito objetivo ao reger e tutelar o direito de propriedade o fez e com razão para resguardar a estrutura Estatal e garantir o “progresso” da sociedade. E, com esta vertente, tutelou no âmbito civil, penal, comercial, trabalhista e administrativo o instituto da propriedade, inclusive determinando que o Estado o proteja e zele, possibilitando ao cidadão o direito de garanti-lo contra atrocidades de aberrações à sua liberdade individual e de exercer com plenitude o “seu poder de propriedade” (ainda mais a propriedade imobiliária). Porém, esta regra não é máxima e nunca poderá ser aplicada de forma isolada de um contexto.
Continuando.
De igual sorte que a propriedade configura garantia e direito fundamental (“caput” do art. 5º da Constituição Federal) foi elevado ao mesmo patamar – de garantia e direito fundamental – o direito social da moradia (conforme diversos artigos da Constituição, p.ex. art. 6º e 182), e assim, determinado pelo Legislador Constituinte Originário que “a propriedade deverá atender sua função social” (e não o inverso!), ou seja, que a propriedade imobiliária deve antes guardar sintonia com sua função social e permitir o amplo exercício da moradia e do desenvolvimento humano e societário.
Se a ciência do Direito deve – como imperativo categórico – observar dentre as diversas regras a que está adstrito, a propriedade e sua função social, e de igual sorte, as demais cominações e anseios Constitucionais quanto ao tema, não há que se cogitar de uma norma de direito processual, civil ou penal, sobreviver e se destacar de forma isolada e preponderante como no caso dos institutos da “propriedade” (arts. 1228 e seguintes do Código Civil além daqueles que regem “as ações possessórias” arts. 920 e seguintes do Código de Processo Civil), sob pena de invalidade do direito objetivo e ineficácia do direito subjetivo, o que gera como efeito direito o “caos social”.
E mais. O imperativo constitucional e por sua vez político-nacional é tão exigente e rígido quanto à questão social, que o próprio Código Civil de 2002 ao ser elaborado determinou que o direito privado em seu espelho maior (o Contrato) observe a função social (art. 421 do Código Civil). Ou seja, o direito subjetivo ao ser exercido deve compatibilizar-se com o direito objetivo em sua vertente social e não apenas na esfera privada-individual, como pretende a corrente positivista e privatista do Direito.   
Insiste-se que a política e a norma nacional obrigam constantemente e de forma repetitiva que a “propriedade” observe sua “função social” inclusive ao instituir sistemicamente o instituto da desapropriação. Ora, o referido instituto nada mais é do que a possibilidade que o Estado tem de utilizar o Direito (público) para atender os princípios e objetivos fundamentais da República e que norteiam a sociedade, como por exemplo: o da dignidade humana, da promoção do bem de todos, da erradicação da pobreza e da marginalização (art.1° e 3° da Constituição). A propósito este é o discurso reinante para a política da “reforma agrária” (urbana e rural) no país (e para não ficar nas entrelinhas: e o por que o Estado não empregou no caso concreto do Pinheirinho a desapropriação?).
No Estado de Direito, mais precisamente, no caso do Pinheirinho, prevaleceu a “desordem sistêmica e incongruente do Direito”, no qual o título de propriedade prevaleceu de forma isolada sobre os demais ditames, princípios e objetivos, demonstrando que houve falência prévia dos três Poderes da República ao não conseguirem preventivamente equacionar conflitos de interesses: individuais (do proprietário = massa falida) versus coletivos e sociais (da sociedade brasileira e da Carta de 1988). Além de que a equalização esperada deveria ser prévia e ocorrer no curso do processo judicial, afinal, uma das funções do processo é a pacificação do conflito, o bem de todos e não o inverso. 
Vale salientar que ocorreu ausência total de sensibilidade jurídica e humanista de todos aqueles que lidaram com o problema, pois, o que se esperava era que o Julgador encontrasse uma forma de equacionar o problema, como por exemplo tentar por meio da negociação com os demais poderes, com o titular do título de propriedade e com a população local uma saída socialmente aceitável, ou então, que se abstivesse de determinar a reintegração até que a “massa falida” conseguisse espaço e condições dignas para alocar todas aquelas famílias.
A propósito, quanto ao título de propriedade (possivelmente uma escritura ou mesmo uma certidão do registro de imóveis) atribuindo à massa falida de uma empresa especulativa no mercado imobiliário o domínio do espaço, recorda-se que o valor intrínseco do documento não pode ser absoluto e suficiente por si, pois, distorções históricas podem ter ocorrido, bem como a utilização do mesmo para fins escusos, incumbindo novamente ao interprete e aplicador da norma a investigação e busca da verdade. Eis então mais uma função para o processo judicial a busca da verdade formal e não apenas mera suposição da aludida “verdade formal”.
Recorda-se para ilustrar a ausência de valor supremo de um documento, mesmo que público a saga do personagem principal do livro “O cemitério de praga”, de Umberto Eco, publicado pela editora Record, no qual o capitão Simonini ganhava a vida como um excelente tabelião falsário e que corroborava os atos e atrocidades de diversos governos Europeus do início do século passado.  Ora, com isso resta claro que o teor de um documento não pode ser absoluto já que a forma é questionável (e ninguém melhor que o mestre da Semiótica – Umberto Eco – para nos lembrar de tal fato) e o que dizer do conteúdo![4]
Retomando. Se a forma não pode ser absoluta como proposto – do direito de propriedade “cru e independente” -, então se deve observar criticamente o contexto fático e inserir tais fatos no todo sistêmico constitucional, social e humanitário. E para este exercício hermenêutico, em tese, o operador do direito – Juiz, Promotor, Advogado, Professor e outros – deveria estar atento e realizá-lo sem titubear. Mas não foi o que ocorreu no caso do Pinheirinho.
A interpretação do inciso XXII do art. 5º da Constituição Federal, que trata da propriedade que é imediatamente seguido pelo aclaramento de que sua aplicação e alcance “SEMPRE” deverá se ater ao “valor social da propriedade” (inciso XXIII do mesmo dispositivo constitucional), não foi equalizado de forma ampla e sistêmica, acarretando em uma chaga social, jurídica e política séria e preocupante, e por que não, ocasionando a invalidade de todo o processo decisório de reintegração e por sua vez, das demais decisões tomadas no processo?
Se a propriedade deve observar seu valor social e este sim (propriedade com valor social) com valor de direito fundamental e humano consagrado pela norma jurídica interna, mesmo que sirva à uma liberdade privada, como seria possível compatibilizar os fatos ocorridos no Bairro do Pinheirinho e aqueles determinados pelo Poder Judiciário como fundamentos para a ordem de “reintegração de posse”?
Pois bem, antes de adentrar numa proposta de resposta ao questionamento, relevante relembrar e corroborar que no ato de interpretar a norma o jurista e interprete deve analisar o sistema jurídico que a mesma está inserida que no caso, corresponde a um contexto sistema positivista-dogmático-social, operando a integração e harmonização das normas e institutos, e nunca (e o termo foi empregado propositalmente) de forma isolada, pois se assim agir não conseguirá buscar o sentido e alcance das normas e das expressões, logo, não permitirá com que o Direito alcance sua plenitude que como visto é o “equilíbrio social e a ordem” dentre outros.
A ausência de uma interpretação sistêmica da norma jurídica (sobretudo na ciência jurídica que optou pelo sistema positivo-dogmático-social) gera a ineficácia do provimento jurisdicional, ainda mais quando confrontado com os princípios norteadores do Estado e do próprio sistema que valorizam o Ser Humano e consideram como elemento central os “valores sociais”.
Ora, é certo que pelo exposto escancara-se que a sociedade atual enfrenta criticamente o problema de proteger os direitos do homem, pois, é certo que mecanismos jurídicos e até políticos para fundamentá-los e justificá-los existem e até sobram, como os diversos artigos de lei, princípios e regras aqui trabalhadas e mencionadas. Em suma, o problema atual não é ter instrumentos legais para aplicar, mas sim aplicá-los de forma adequada e coesa.[5]
Diante destas colocações, a resposta para a questão: de como a ordem foi dada e a “reintegração de posse” realizada a todo custo (político, social, econômico e jurídico), é fácil de ser alcançada e vislumbrada. Qual seja, a de que o Poder Privado (fundamentado pelo Direito) é e sempre o foi na modernidade meio de afirmar o processo de alienação imposto pelas minorias em detrimento aos direitos da maioria. Repete-se que a ordem de reintegração de posse que teve como norte a propriedade sem ater-se à sua função social, serviu exclusivamente aos interesses de uma parte no processo – a massa falida de uma empresa – e não aos anseios constitucionais do povo brasileiro e especialmente, dos brasileiros do Pinheirinho.
Para exemplificar e potencializar a questão: poderia o interprete da norma constitucional ler o texto do art. 170 da carta de 1988 e ali encontrar subsídios (in)válidos para sua decisão, e logo concluir que todo o sistema infraconstitucional e que o próprio Estado deve sempre estar alinhado “à atividade econômica”? É lógico que não, e o inverso corresponde a um enorme equivoco!  Já que o capítulo constitucional a que nos referimos (Título VII, Capítulo I) prescinde de análise sistêmica e ampla com a parte introdutória do Texto de 1988 (arts. 1º a 4º) e ainda, o interprete necessita observar de forma atenta o caso em si e as particularidades e circunstâncias, sob pena de invalidade da regra de subsunção (do fato à norma).
Ou seja, quer pela função social da propriedade como direito fundamental, quer como fruto da atividade econômica o interprete e aplicador da norma está constrito ao Sistema Jurídico (Social) e “nunca” a um de seus elementos particulares.
Estas inclusive foram as lições de Francesco Ferrara, na obra “como aplicar e interpretar as leis”[6],  na qual sabiamente destacou que o jurista deverá considerar os efeitos das normas na totalidade e não a norma “per si”, sendo esta “aplicação consciente do direito, ou a técnica da decisão”. E continua, ao afirmar que: “ao julgar, portanto, o juiz utiliza, e deve utilizar, conhecimentos extrajurídicos que constituem elementos ou pressupostos do raciocínio.  (...) tais são os ‘princípios de experiência’, definições ou juízos hipotéticos de conteúdo geral, ganhos por observação de casos particulares, mas elevados a princípios autônomos com validade para o futuro”.
Logo, talvez seja o caso de retornar e revisitar o conceito de Direito entendido pelo positivismo-dogmático (como aqui já mencionado), e reviver algo como a proposta de Miguel Reale em sua teoria tridimensional do Direito, para o qual “o Direito é o composto de fato, valor e norma”[7] (neste mesmo diapasão a corrente neoconstitucionalista ou pós-positivista). Nessa concepção não se pode esperar que o Jurista e aplicador da norma possua apenas uma formação técnica-jurídica (para compreender a faceta da norma), mas também e em paralelo, que o seja um sociólogo (para compreender o fato) e um filósofo (para compreender o fato).
Em idêntico sentido Rizzatto Nunes observa que “é preciso resgatar a magnificência da dignidade humana, que é o fundamento último que dá sustentação ao Direito, através da abertura das mentes que se dedicam ao estudo do Direito, o que passa, necessariamente, por uma avaliação sincera dos métodos da Ciência do Direito, dos institutos jurídicos existentes, das condições sociais reais nas quais o Direito está incluindo, sobre as quais ele influi e das quais recebe influência. Enfim, é preciso pensar abertamente na função social do Direito e no papel social exercido pelos que o operam.”[8]
Historicamente, e não tão longe, o incidente social do bairro do Pinheirinho em São José dos Campos, São Paulo remete à desocupação catastrófica de Canudos, na Bahia, com uso inclusive de forças do exército em mais de quatro incursões, e após o massacre de quase 25 mil pessoas, e como meio de tentar enterrar a história nacional, se construiu uma barragem nas proximidades o que alagou as terras do espaço defendido por Antonio Conselheiro e seus confrades (como narrou Euclides da Cunha na obra “Os Sertões”). Será que teremos algo do gênero no Pinheirinho? Quem sabe um condomínio de casas de alto padrão no espaço?
Deste fato épico nacional, concluí-se que é lamentável e triste que decorridos mais de 100 anos o Estado Brasileiro por intermédio dos seus três Poderes ainda autorize e convalide por meio do Direito as atrocidades aqui descritas em que sempre se fez valer a “liberdade individual” que se confundiu com o “direito à propriedade privada”, já que o direito individual de dispor do seu patrimônio é o sinônimo equivocado de uma sociedade livre, igualitária e segura (juridicamente) sem espaço para um “direito social e coletivo”. O Estado errou e continua a errar.
A sociedade anseia por mudanças, o “Social Constitucional” como mínimo vital precisa passar a valer ou “pare o bonde que quero descer!”


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