Edição do dia 18/03/2012 - Atualizado em 19/03/2012 00h31
Repórter trabalha infiltrado em repartição pública e flagra escândalo de corrupção
Durante dois meses um repórter do Fantástico trabalhou em uma repartição pública. O que ele viu - e gravou - é um escândalo.PUBLICIDADE
Durante dois meses um repórter do Fantástico trabalhou em uma repartição pública. O que ele viu - e gravou - é um escândalo. Um retrato de como algumas empresas agem em órgãos do governo para ganhar dinheiro. Muito dinheiro. O nosso dinheiro.
Entre quatro paredes, o que a gente paga em impostos e que deveria ser destinado à saúde, à educação e outros serviços vai parar no bolso de empresários inescrupulosos e funcionários públicos corruptos. Uma vergonha.
A reportagem é de Eduardo Faustini e André Luiz Azevedo.
Empresários abrem o jogo. Licitações fraudadas são mais comuns do que a gente imagina. O desvio de dinheiro público é tratado por eles como coisa normal. E eles confessam que pagam propina. Os valores são milionários.
Você vai se assustar com o truque que eles usam para esconder o suborno.
O Fantástico mostra agora o mundo da propina, da fraude, da corrupção. De um jeito como você nunca viu. E vale a pena você ver: É o seu dinheiro que eles estão roubando.
Nosso objetivo foi descobrir como isso é feito. O Fantástico pediu ajuda à direção de um hospital de excelência, hospital de pediatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, um grande hospital público infantil. Queríamos assumir o lugar do gestor de compras da instituição, acompanhar livremente todas as negociações, contratações, compras de serviços. Saber se existe oferta de propina, pagamento de suborno de um dinheiro que deveria ser sagrado: o da saúde.
Conseguimos. Durante dois meses, nosso repórter Eduardo Faustini frequentou o hospital. Na verdade, foi bem mais do que isso. Ele teve um gabinete aqui dentro. Foi o novo gestor de compras da instituição. Essa informação só era de conhecimento de duas pessoas no hospital, o diretor e o vice-diretor. Para todos os outros funcionários, o nosso repórter era mesmo o novo responsável pelo setor de compras.
“Todo comprador de hospital, a princípio, é visto como desonesto. Acaba que essa associação do fornecedor desonesto com o comprador desonesto acaba lesando os cofres públicos. E a gente quer mostrar que isso não é assim, em alguns hospitais não é assim que funciona”, disse Edmilson Migowski, diretor do Instituto de Pediatria/UFRJ.
As negociações foram todas filmadas de três ângulos diferentes e levadas até o último momento antes da liberação do pagamento. Evidentemente, nenhum negócio foi concretizado, nenhum centavo do dinheiro do contribuinte foi gasto. Só mesmo o tempo dos corruptos é que foi perdido. E eles agora vão ser desmascarados.
Com autorização da direção do hospital, o repórter Eduardo Faustini convocou licitações em regime emergencial. Elas são feitas por convite, são fechadas ao público. O gestor convida quem ele quiser.
Sem nenhuma interferência do hospital, o repórter escolheu quatro empresas, que estão entre os maiores fornecedores do Governo Federal.
Três dessas empresas são investigadas pelo Ministério Público, por diferentes irregularidades. E, mesmo assim, receberam juntas meio bilhão de reais só em contratos feitos com verbas públicas.
Em frente ao repórter gestor de compras, nessas cadeiras, se sentaram diretores, donos de empresas que deram uma triste aula de como se é desviado o dinheiro dos serviços públicos.
Cassiano Lima é gerente da Toesa Service, uma locadora de veículos. Foi convidado para a licitação de aluguel de quatro ambulâncias. Ele começa tomando cuidados.
“Queria saber quem me recomendou”, questiona Cassiano Lima. Mas o desejo de fechar negócio é maior. E ele abre o jogo. “Cinco por cento. Quanto você quer?”, pergunta ele.
Falando em um código em que a palavra "camisas" se refere à porcentagem desviada, Cassiano aumenta a propina.
“Dez camisas, então? Dez camisas?”, sugere.
“Pode melhorar isso, não?”, pergunta o repórter.
“Quinze”, aumenta.
Renata Cavas é gerente da Rufolo Serviços Técnicos e Construções. A empresa tem vários contratos com hospitais.
“Vocês estão trabalhando para o Into?”, pergunta o repórter.
“Into, Cardoso, Ipanema, Lagoa e Andaraí”, responde Renata Cavas.
Ela foi chamada para a licitação de contratação de mão de obra para jardinagem, limpeza, vigilância e outros serviços.
Ela também vai direto ao ponto.
“Eu quero o serviço. Você escolhe o que você quer. Vou fazer. Faço meu preço, boto. Qual é o percentual? Dez?”, questiona Renata.
O repórter quer saber exatamente qual é o valor que a gerente está oferecendo.
“Se eu ganho um milhão e trezentos, eu dou 130. É o normal”, diz. “Dez por cento. É o praxe, mercado é 10%. Se a sua pretensão é 15, ótimo. Você tem que me informar, porque eu vou formatar em cima da sua pretensão”, completa.
O repórter quer saber se a gerente é capaz de aumentar ainda mais a propina.
“Eu pensei em 20%”, diz ele.
“Tranquilo, você manda. Eu quero o serviço”, afirma Renata.
Carlos Alberto Silva é diretor e Carlos Sarres, gerente da Locanty Soluções e Qualidade.
“A gente tem muitos contratos. Tem mais de 2 mil contratos”, informa Sarres.
“Nós temos hoje, aproximadamente, 3 mil clientes nessa área de coleta”, diz Silva.
Foram convidados para a licitação de coleta de lixo hospitalar.
“A gente vai precisar é de preço. É um dos itens mais importantes para gente montar lá”, diz Silva.
“O que você tem para oferecer?”, pergunta o repórter.
“Você fala em matéria de percentual? Percentual, o preço que der, a gente abre para você o custo e a nossa margem, e a gente joga o percentual que você desejar, que você achar que encaixa”, afirma Sarres.
“A margem, hoje em dia, fica entre 15 e 20”, diz Silva.
Os empresários explicam como é feito o pagamento da propina para que ninguém perceba.
“Onde você marcar. Os caras são muito discretos. Nem parece que é dinheiro. Traz em caixa de uísque, caixa de vinho. Fica tranquilo. A gente está acostumado com isso já.”, afirma Sarres.
Quem fala é David Gomes, o próprio presidente da Toesa: “Bateu o crédito na conta. No máximo 48 horas depois, está na sua mão”, conta. “Eu diria que é a maior empresa no ramo de ambulância em atividade no país”, afirma.
Ele veio avalizar todo o acerto que foi feito para o pagamento da propina. “Uma das coisas que eu passo para os meus filhos e que eu aprendi,: eu protejo meu contratante, meu contratante me protege”, diz ele.
O pagamento é sempre em dinheiro.
“Que tipo de moeda?”, pergunta o repórter.
“A que você quiser. Normalmente em real, o real está mandando aí”, explica ele.
Ele oferece outras opções: “Dólar, euro”.
“Como você quiser, até iene. Quer iene?”, diz Renata Cavas.
Ela faz outra visita à sala do suposto gestor, e o repórter Eduardo Faustini pergunta: Qual é o melhor lugar para entregar a propina?
“Shopping, praia. Shopping. Subsolo, discreto. Quinta da Boa Vista! Sensacional. Floresta da Tijuca. Olha aí que bacana”, diz ela.
O suborno pode ser um percentual do valor total. Ou um valor fixo em cima de cada item fornecido.
“Tem gente que não conhece alimentação e diz assim: ‘Figueiredo, eu quero 30%’. Isso não existe em alimentação. Em alimentação, nós temos que considerar a quantidade diária, colocar mais um valor ali em cima, que no montante do mês a coisa vai crescer. Então o que eu vou fazer? Eu vou te apresentar os preços e você vai dizer: ‘Figueiredo, tu vai botar mais xis aí em cima’. Deu para entender? Está claro?”, explica Figueiredo.
Jorge Figueiredo é representante comercial da Bella Vista Refeições Industriais.
“Somos uma empresa aberta para negociação. Forneço para Jardim Zoológico, Guarda Municipal. Forneço para Policia Civil, a gente está em todas”, completa ele.
Ele dá um exemplo de como esse esquema de propina pode chegar a valores absurdos: “Isso é bom quando você está falando de três, como eu tenho aí. Eu tenho fornecimento de 12 mil serviços por dia. Aí, meu irmão. Tu bota 12 mil serviços em um dia, acrescentando mais um real em cada serviço e projeta isso para 30 dias. Aí é o diabo”, diz.
Em um hospital, a palavra emergência deveria servir apenas para classificar um tipo de atendimento. Mas não é assim. Emergência pode ser o código para licitações e concorrências de carta marcada.
“Emergências existem. Um terremoto derruba as pontes, enchentes. Agora, uma coisa que acontece demais são emergências planejadas. Você tem uma repartição pública lá e o sujeito do almoxarifado, juntamente com o diretor, que sempre está conivente, deixa o papel higiênico chegar em um ponto em que ,'amanhã vai acabar o papel higiênico, temos que comprar papel higiênico por emergência!", explica Claudio Abramo, diretor da Transparência Brasil.
Como a lei prevê concorrência, mesmo em licitações em regime emergencial, a empresa que corrompe se oferece para conseguir as outras concorrentes.
“Vou trazer tudo filé. Só empresa boa, de ponta. Vou trazer empresa de ponta, tá?”, garante Renata.
As concorrentes, que fazem parte do esquema, entram com orçamentos mais altos que o da primeira empresa. Entram para perder.
“A gente faz a mesma coisa para eles. Eles pedem para gente a mesma coisa. Da mesma maneira que a gente vai pedir para eles formatarem uma proposta em cima da nossa - a nossa mais baixa - eles pedem para gente fazer isso para eles”, diz Sarres.
“Do jeito que eu cubro aqui, ele me cobre lá. É uma troca de favores”, define Silva.
“É uma troca de favores. Isso é muito normal, tá? É extremamente normal”, garante Renata.
O nosso repórter, que se passa por gestor de compras, pede a presença do dono da empresa para confirmar o pagamento da propina. Rufolo Villar vai ao hospital. Ele confirma que, apesar de não estar no contrato social da Rufolo, é ele mesmo quem manda na empresa.
“Quem existe no contrato social é minha mãe e meu tio. Eu toco a empresa”, diz ele.
“Já fizemos todos os hospitais, de uma vez só, do estado”, garante ele.
Ele fala abertamente sobre o pagamento do percentual da propina. “O mercado pratica 10%, é o normal, é o praxe. Aí tem uma negociação melhorzinha e faz para 15%. Hoje, 20% eu não vejo mais no mercado”, diz.
O empresário diz que este roubo do dinheiro público que o Fantástico está denunciando é comum. O que é uma fraude, ele chama de acordo de mercado.
“Felizmente, nós temos um acordo de mercado. Isso é normal. Eu faço isso direto. Tem concorrência que eu nem sei que eu estou participando”, afirma.
“É a ética do mercado, entendeu?”, diz Renata.
“No mercado, a gente vive nisto. Eu falo contigo que eu trago as pessoas corretas. Vigarista, não quero nunca”, afirma o empresário.
Para comemorar a negociata, ele convida o gestor para o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro.
Uma licitação correta, honesta, tem que terminar sempre com a abertura dos envelopes das propostas para afinal se saber quem é o vencedor. Mas na licitação fraudada, isso não acontece. É que os valores de todas as propostas já são acertados previamente.
O representante da Toesa antecipa o que só deveria ser conhecido na abertura dos envelopes. Ele fala em milhares de reais.
“Dois, oito, zero.O nosso, Toesa. O outro é 313”, diz o representante.
A representante da Rufolo faz a mesma coisa.
“Pode abrir? Não lacrei nada. Valor da CNS/ano: 5, 990, 002, 48”, diz Renata.
“O principal para mim: nossos 20%?”, pergunta o repórter.
“Está tudo aí dentro”, garante ela.
No dia do pregão, os representantes das empresas vão ao hospital para completar a farsa.
Preste atenção na cena absurda: a licitação para a contratação de empregados para serviços gerais. A ata é o documento final da licitação. E tem que ser feita por um funcionário público responsável pela concorrência. Mas, lá, o documento oficial é redigido pelos representantes das empresas.
Se o contrato fosse cumprido, a Rufolo receberia R$ 5.184.000. A propina seria de mais de R$ 1.036.800.
A situação se repete na licitação para a escolha da empresa que vai ser respondável pelo lixo hospitalar. Ela está armada para a escolha da Locanty. A empresa conseguiria a verba de R$ 450 mil. O que daria de propina quase R$ 70 mil. E o mesmo acontece na disputa fraudada pela Toesa para fornecimento de ambulâncias. A Toesa ganharia R$ 1,680 milhão pelo contrato. O desvio seria de mais de R$ 250 mil.
Apenas nestes três contratos, o gestor corrupto ganharia quase R$ 1,4 milhão do dinheiro da saúde.
Nós telefonamos para o presidente da Toesa. “Vocês cismam que tem carta marcada e não tem prova para isso. Você tem prova de que existe licitação de carta marcada?”, disse David Gomes, da Toesa.
Durante essa reportagem você viu Cassiano Lima, funcionário de David Gomes, fraudando uma licitação.
Telefonamos também para a empresa Rufolo. É a própria Renata que atende a ligação. Ela diz que o empresário vai falar e marca a entrevista.
No dia marcado, fomos à empresa. Uma secretária avisa que ninguém falaria.
Com Jorge Figueiredo, que no meio da licitação desistiu de disputar o contrato, conversamos por telefone. Ele parece não acreditar. “Só pode ser trote. Para de gozação”, diz ele.
Nós fomos à sede da Bella Vista. Fomos avisados de que não nos receberiam.
E o golpe não termina nem com o fim licitação de emergência, feita por convite. O representante da empresa de coleta de lixo explica como uma fraude pode continuar, mesmo em uma concorrência aberta ao público.
“As empresas que vão participar desse pregão são as empresas que a gente vai fechar, entendeu? Você vai fazer a retirada do edital aqui. Você pode disponibilizar o edital na internet. Mas a retirada do extrato tem que ser aqui. Aí, quando ele retira, tu vai me dizer quem está retirando, entendeu? E deixa o resto com a gente. Aí a gente vai nas pessoas, cara, aí monta tudo, entendeu?”, explica Sarres.
O repórter do Fantástico pergunta por que uma empresa entraria para perder na concorrência.
“Porque existe uma mesa. Pode acontecer. Mas existe uma mesa, você pode ter certeza. Difícil dar errado”, garante Sarres.
O que ele chama de mesa é um acordo para fraudar as concorrências. Nós fomos à sede da Locanty. O gerente Carlos Sarres negou envolvimento nas fraudes.
Carlos Sarres: Desconheço completamente. Isso chega a ser fantasioso.
Fantástico: O senhor não oferece de maneira alguma suborno para o funcionário público.
Sarres: De maneira nenhuma.
Fantástico: O senhor não vem com a licitação já preparada?
Sarres: De maneira nenhuma.
Por email, a Locanty informou que afastou temporariamente o gerente Carlos Sarres.
O ministro-chefe da Controladoria Geral da União, que é um dos principais responsáveis por combater a corrupção nos órgãos federais diz que em oito anos mais de três mil funcionários públicos foram punidos. Ele defende que haja também maior rigor para os maus empresários.
“Existe uma noção pré-concebida contra o funcionário público, que ele é o mau, ele é o corrompível. Enquanto que o empresário, o setor privado, é puro, é eficiente, é eficaz. Associada à noção de que a empresa tem que entrar nesse jogo, porque senão ela não leva vantagem porque as outras vão fazer. Isso distorce o mercado, distorce a competição e no longo prazo prejudica todo mundo”, comenta Jorge Hage, ministro da Controladoria Geral da União.
“A pessoa que rouba da saúde deveria ter o dobro da pena, porque quando você rouba o dinheiro da saúde, você mata as pessoas”, diz Edmilson Migowski.
Eles não sabiam que estavam sendo filmados. Mas sabiam bem o que estavam fazendo.
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