‘O grito’ movimenta o mundo dos leilões de arte
Uma das cinco versões da obra de Edvard Munch é posta à venda
RIO - Numa tarde qualquer de 1893, o jovem Edvard Munch (1863-1944) caminhava com dois amigos numa espécie de calçadão de Ekeberg, na Zona Leste de Oslo, e se esforçava para digerir seu drama existencial. Aos 30 anos de idade, o norueguês de nariz pontudo já tinha enterrado a mãe e uma de suas três irmãs, havia rompido relações com o pai, que não o apoiava como artista, e acabara de deixar o hospício em que outra irmã, Laura Catherine, uma maníaco-depressiva para lá de atormentada, vivia internada.
O sol se pôs de repente, e o céu se tingiu de um vermelho-sangue perturbador. Ainda ouvindo os gritos dos internos do hospício, Munch teve a epifania que o catapultaria à fama para sempre: "Sentindo-me exausto, parei e me debrucei sobre uma grade. Havia línguas de fogo sobre o azul-escuro da cidade e do fiorde", escreveu em seu diário, anos mais tarde. "Meus amigos continuaram andando, mas eu fiquei ali, tremendo, tomado pela ansiedade, e senti o grito infinito da natureza."
Com isso na cabeça, entre 1893 e 1910, o pintor trabalhou numa série de imagens denominada "O grito". Fez duas telas, dois pastéis e uma litografia que traduziram para duas dimensões o horror de um berro enrustido. E o sucesso foi tanto que, 119 anos mais tarde, ainda provoca frenesi no mundo das artes.
Na próxima quarta-feira, a Sotheby’s de Nova York promove uma noite de gala para leiloar um dos gritos de Munch. O pastel de 79 centímetros de altura por 59 centímetros de largura datado de 1895 é a única versão que ainda compunha uma coleção particular — a do empresário noruguês Petter Olsen. As outras estão na National Gallery de Oslo e no Munch Museum.
O pastel em questão se destaca por ser o grito mais colorido de todos, o único em que uma das duas figuras ao fundo se debruça sobre a grade do tal calçadão e o único que tem um pequeno poema escrito à mão pelo próprio Munch em sua moldura — um texto que fala exatamente da tarde em que ele "ouviu" o grito da natureza.
A agitação em torno da obra é grande, e seu lance inicial deve rondar os US$ 80 milhões, informa a Sotheby’s.
Certo de que essa cifra será ultrapassada, e em muito, o jornal "The Financial Times" cravou, há alguns dias, que "O grito" é a segunda obra de arte mais famosa do mundo, atrás apenas da "Mona Lisa", de Leonardo Da Vinci, e lembrou que ela já serviu de base para trabalhos de artistas como Andy Warhol e Erró, de diretores de cinema como Wes Craven (em "Pânico") e até de cenário para "Os Simpsons".
A revista "Forbes" aposta, por sua vez, que o pastel estabelecerá um novo recorde de preço em leilões e joga todas as suas fichas no poder de compra da família real do Qatar, que recentemente adquiriu "Os jogadores de cartas", de Paul Cézanne, por US$ 250 milhões.
A "Artinfo", publicação especializada no setor, também não economiza. Diz que o dia 2 de maio será "um dos momentos mais importantes da década para o mundo dos leilões de arte", enquanto o britânico "The Telegraph" noticia que, em quatro dias de exposição na Sotheby’s de Londres, "O grito" pertencente a Olsen gerou uma fila de mais de cinco mil pessoas.
— Essa foi uma das obras de Munch que os nazistas leiloaram na Suíça antes da Segunda Guerra. Tem uma história incrível — conta Petra Petersen, curadora do Munch Museum, revelando sua ansiedade. — Ela não se alinhava com o que os nazistas acreditavam ser arte, e só não foi queimada porque eles não quiseram.
Até o início do mês — e por 70 anos —, "O grito" ficou pendurado em uma das paredes da sala de jantar dos Olsen, em Oslo. "Convivi com esse trabalho por toda a minha vida, e seu poder e sua energia só cresceram com o tempo", diz, em nota, Petter Olsen. "Agora, sinto que é hora de oferecer ao resto do mundo uma chance de ter e de apreciar essa memorável obra."
Thomas Olsen, pai de Petter, foi amigo de Munch e comprou muitos de seus trabalhos. Com o que for arrecadado no leilão, a família pretende criar um novo centro cultural em Nedre Ramme, cidade ao sul de Oslo onde Munch viveu os últimos 30 anos de sua vida. O centro deverá ter uma galeria de arte e expor outras obras da coleção dos Olsen. A família também pretende restaurar a casa e o estúdio do pintor, antes de abri-los ao público.
Até quarta-feira, "O grito" em pastel poderá ser visto na galeria da Sotheby’s em Nova York, sob um robusto esquema de segurança. Afinal, suas telas-irmãs já foram alvo da cobiça de ladrões duas vezes nos últimos anos. Em 1994, a versão da National Gallery de Oslo desapareceu durante a abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno, e as polícias norueguesa e britânica demoraram três meses para recuperá-la. Em agosto de 2004, foi a vez de o Munch Museum ficar sem seu "O grito". O caso foi resolvido dois anos mais tarde, graças a um fotógrafo anônimo que registrou dois indivíduos fugindo num carro com a pintura.
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