Ed Ferreira/AE
João de Deus atende milhares de pessoas em sua clínica
Em Abadiânia, a fé move montanhas. De dinheiro. Atraídos pelo dom do médium João Teixeira de Faria, o João de Deus, cerca de 3.000 fiéis visitam, semanalmente, a Casa Dom Inácio de Loyola, em Goiás (…)
Hoje, aos 69 anos, João de Deus é dono de pelo menos uma fazenda de 597 alqueires - o correspondente a 18 parques como o do Ibirapuera (zona sul de São Paulo) - na divisa de Goiás com Mato Grosso. Lá, uma propriedade dessa dimensão não vale menos do que R$ 2 milhões. O médium tem o garimpo como fonte de renda.
Apesar de o atendimento ser gratuito, a casa, fundada em 1976, conta com farmácia de manipulação, livraria, lanchonete e loja de cristais benzidos pelo médium. Até a água fluidificada tem valor agregado. A garrafa custa R$ 1. Energizada, vale R$ 3.
O grosso do dinheiro arrecadado vem da venda de frascos de passiflora, calmante natural fabricado pelo grupo (…)
O frasco, com 175 cápsulas, custa R$ 50. Como a média de atendimento é calculada em mil pessoas por dia, três vezes por semana, a receita com a venda pode chegar a R$ 500 mil ao mês (…)
O complexo oferece ainda sete cabines de banho de cristal - camas em que pacientes passam por imersão de luz. O preço cobrado é de R$ 20 por 20 minutos de sessão.
Relatos sobre procedimentos do médium, que incluem cirurgias com corte, a depender da escolha do consulente, garantiram-lhe notoriedade internacional (...)
Num pátio de acesso ao salão, vídeos exibem cenas de intervenções com corte, a maior parte no olho e na barriga”.
Para a lei não há milagres. Não é que a lei diz que milagres não existem, ou que existem. Mas aquilo que não pode ser observado e explicado racionalmente, não interessa à lei. É uma questão íntima das pessoas e a lei apenas protege a religiosidade, a fé, as diferenças culturais etc. Ela não diz que religião elas devem seguir ou mesmo se devem crer (ou deixar de crer) em algo.
Mas isso não quer dizer que religião e crença não seja importante para a lei. São. Há, em especial, dois artigos no Código Penal que indiretamente lidam com a exploração da fé das pessoas.
O primeiro chama-se charlatanismo, que é uma espécie de mentira utilizando a crença do outro. Nele, o criminoso inculca ou anuncia cura por meio secreto ou infalível.
Simplesmente dizer que você pode curar alguém não é crime (se fosse, todos os médicos estariam presos). Mas dizer ou propagandear que a cura é infalível ou que você possui um meio secreto de curar as pessoas é crime. É aí que entra o charlatanismo.
Ninguém pode garantir que haverá cura (nem mesmo para um simples resfriado). Garantir que você irá curar alguém – mesmo usando meios convencionais, e ainda que você seja um ótimo médico – é crime. Da mesma forma, se você propagandeia que seu método, ainda que não gere cura garantida, é secreto, você também está cometendo o crime. Em ambos os casos, a ideia é proteger a sociedade contra pessoas que desrespeitam premissas básicas da ciência: que a cura nunca é certa e que todo método de cura precisa ser replicável e validado pela comunidade científica.
A lei não exige que alguém acredite no que foi dito ou propagandeado, e muito menos que alguém seja prejudicado por isso. Basta que a pessoa diga ou propagandeie. O que se exige é que o criminoso saiba que ele não será capaz de curar a pessoa, que seu método não seja eficaz, ou que, ainda que seja eficaz, não gere cura garantida.
Já se a pessoa acredita que seu método irá de fato curar o doente, ele pode estar cometendo um outro crime: exercício ilegal da medicina, que é “exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorização legal ou excedendo-lhe os limites”, que é, na verdade, um crime mais grave (a pena é maior: até dois anos, enquanto o curandeirismo a pena máxima é de um ano).
Um segundo crime importante é o curandeirismo, que é diagnosticar, receitar, entregar ao consumo ou aplicar qualquer substância (não importa que ela seja um placebo), ou usar gestos, palavras (incluindo ‘rezas’) ou qualquer outro meio de cura para tratar a doença de alguém. É o casa das benzedeiras e das pessoas que vendem chás para curarem doenças graves.
Ainda que a lei não diga que o criminoso precise praticar esse crime de forma habitual para que o crime seja configurado, os juristas tendem a dizer que se a pessoa comete o crime apenas se faz qualquer das ações acima com habitualidade.
Esse crime é muito mais complexo do que parece porque ele esbarra na liberdade religiosa. Usar gestos e palavras é algo que quase todas as religiões fazem. A benção do padre, por exemplo, é uma forma de cura espiritual para os fiéis. O uso das mãos é importante para os espíritas, o sinal da cruz é parte dos rituais de cura espiritual para os católicos, e assim por diante.
Isso quer dizer que esses religiosos estão exercendo o curandeirismo?
Não, porque a Constituição protege os rituais de fé. O limite – que muitas vezes é confuso – é quando esse ritual de fé passa a colocar a saúde das pessoas em perigo. Se o padre disser ao doente que ele não precisa procurar o médico porque sua benção já basta, aí sim, pode haver crime.
E o caso de quem pratica operações espirituais? Bem, a lei diz que é curandeirismo tratar alguém com “gestos, palavras ou qualquer outro meio”. O problema está na expressão “qualquer outro meio”. Os juristas dizem que não é simplesmente qualquer outra forma, mas qualquer outra forma similar a (na mesma classe de) um gesto ou palavra. E cirurgias mediúnicas não é similar a gesto ou palavra.
Logo, o diagnóstico e as palavras podem configurar curandeirismo, mas o corte em si, não. Ele, na verdade, pode ser outro crime: a lesão corporal. Afinal, a vítima sofreu um corte desnecessário, ainda que ela tenha permitido.
Existem mais alguns detalhes desse crime que são importantes: o curandeiro, por definição, é a pessoa inculta que acredita que possa de fato curar. Se ela sabe o que está fazendo, ela não está praticando curandeirismo: ela é uma charlatã (se sabe que está mentindo) ou pode estar exercendo a medicina irregularmente (se acredita de fato que pode curar a vítima sem estar autorizada a exercer a medicina ou, estando autorizada, vai além de sua autorização).
E se ela está usando a prática para tirar proveito econômico da vítima, aí temos um outro crime: o estelionato, no qual o criminoso mente para a vítima para que ela lhe dê parte de seu patrimônio.
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